31 Julho 2023
"É a difusão da riqueza, não uma depressão econômica, que leva ao fim do império romano. A produtividade econômica se desloca das zonas centrais e se espalha para a periferia, dentro e fora das fronteiras, gerando novas riquezas e, portanto, novos centros de poder. O centro permitiu o enriquecimento da periferia, agora tem que acertar as contas com um adquirido poder econômico e político das novas elites. Os reinos dos Vândalos e dos Godos que gradualmente se impõem politicamente sobre Roma durante o século V, e a força de que eles dispõem, são o produto da influência econômica e cultural da própria civilização romana. A nova riqueza da periferia permite aliviar a sujeição a Roma e limitar o fluxo de riqueza que alimentava o domínio imperial", escreve o físico italiano Carlo Rovelli, professor no Centro de Física Teórica da Universidade de Marseille, na França, e diretor do grupo de pesquisa em gravidade quântica do Centro de Física Teórica de Luminy, ao comentar o livro de Peter Heather e John Rapley, sobre a queda do império romano.
O artigo é publicado por La Lettura, 30-07-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo ele, 'hoje há dois caminhos à frente do Ocidente: tentar a todo custo conter o crescimento do resto do mundo, para manter o atual domínio, baseando-se na força militar e em sua agora já insuficiente centralidade econômica (as sanções não fizeram ruir, como muitos esperavam, a economia da Federação Russa), ou aceitar o mundo mais colaborativo e pacífico que tantos países de novas riquezas estão nos pedindo".
Por que o império romano caiu? Peter Heather, diretor do departamento de história medieval do King's College de Londres, e um dos historiadores mais respeitados de antiguidade tardia, recentemente concluiu com John Rapley, ativo economista político na Universidade de Cambridge, um livro esclarecedor sobre a queda do Império Romano: um texto que derruba ideias conhecidas e oferece elementos valiosos para entender o presente.
A história tradicional fala-nos de um declínio econômico e demográfico, em decorrência de que o Império Ocidental não pode mais resistir à pressão dos povos germânicos. O Império do Oriente sobrevive, mas não muito tempo depois é drasticamente reduzido pela expansão árabe.
Não foi o que aconteceu, nos contam Heather e Rapley. Arqueologia e historiografia recentes convergem ao revelar um quadro muito diferente da antiguidade imperial tardia: um período de crescimento econômico e de bem-estar que se espalha não só internamente, mas também para as áreas externas limítrofes ao império. A estabilidade oferecida pela estrutura política central, instituições, estradas, comércios, toda a cultura romana, permitem a propagação de uma prosperidade crescente.
É essa difusão da riqueza, não uma depressão econômica, que leva ao fim do império. A produtividade econômica se desloca das zonas centrais e se espalha para a periferia, dentro e fora das fronteiras, gerando novas riquezas e, portanto, novos centros de poder. O centro permitiu o enriquecimento da periferia, agora tem que acertar as contas com um adquirido poder econômico e político das novas elites. Os reinos dos Vândalos e dos Godos que gradualmente se impõem politicamente sobre Roma durante o século V, e a força de que eles dispõem, são o produto da influência econômica e cultural da própria civilização romana. A nova riqueza da periferia permite aliviar a sujeição a Roma e limitar o fluxo de riqueza que alimentava o domínio imperial.
Economicamente enfraquecida em termos relativos, não absolutos, Roma não tem mais os meios para manter o domínio, e perde a fidelidade das elites periféricas, que preferem se aliar aos novos centros de poder.
O argumento, desenvolvido no livro com riqueza de detalhes históricos, é convincente, também porque oferece uma interessante chave de leitura para entender como os centros de poder migraram também nos séculos seguintes.
A Itália do início da Renascença gera uma riqueza comercial que acaba por alimentar as economias do norte da Europa que logo assumem a primazia. A Europa da revolução industrial desencadeia o desenvolvimento econômico dos Estados Unidos, que acabam por prevalecer. Centros de poder econômico e, portanto, político, perdem o domínio não porque encontram um declínio, mas porque o seu próprio sucesso gera oportunidades econômicas nas periferias, dando origem a novas riquezas face às quais o centro antigo passa a se encontrar numa situação de relativa fragilidade.
Rever a queda do Império Romano do Ocidente nesses termos é esclarecedor para entender o presente. O texto de Heather e Rapley discute a fundo essa analogia. O Ocidente dominou o mundo durante os séculos de colonialismo. Continuou a dominá-lo após a Segunda Guerra Mundial, mesmo quando seu centro se deslocou para o outro lado do oceano. O domínio militar persiste, aliás, se expandiu, mas a centralidade econômica foi radicalmente reduzida nos últimos anos. Não porque o Ocidente esteja em declínio (sua riqueza está aumentando, embora agora menos igualmente distribuída). O domínio ocidental se reduziu, ao contrário, devido ao desenvolvimento econômico muito pujante das periferias.
Pouco depois do fim da Segunda Guerra Mundial, o Ocidente gerava de longe a parte preponderante da riqueza do planeta. Hoje, o crescimento econômico da periferia — China, Índia, Brasil, Estados árabes, África do Sul, Indonésia, leste e sudeste asiático e assim por diante - reduziu a economia ocidental para um componente entre outros. Basta pensar no crescimento espetacular da economia chinesa, inexistente em escala mundial na década de 1950, agora comparável à dos Estados Unidos. O PIB per capita da China é 36 vezes maior do que três décadas atrás: ou seja, em média, um chinês é hoje quase quarenta vezes mais rico que seu pai.
O Ocidente mantém o domínio planetário graças ao seu restante megapoderio militar, mas não mais alicerçado numa decisiva superioridade econômica: uma situação cada vez mais instável. Como durante o Império tardio, foi justamente o desenvolvimento desencadeado pelo domínio ocidental, por sua influência cultural, que permitiu que as periferias crescessem até estar em condições de começar a resistir ao longo período de exploração colonial sobre o qual o Ocidente construiu a sua riqueza durante os últimos séculos.
O problema político que o Ocidente enfrenta hoje não é um declínio: é o simples fato de que as periferias, como no século V, enriqueceram muito mais rapidamente, diminuindo drasticamente o seu peso econômico relativo.
Muitos hoje preveem, temem que seja difícil evitar, a iminência de um confronto armado entre Ocidente e China. (Lembramos que o governo italiano pretende enviar um porta-aviões para o acompanhamento dos EUA no Mar da China). Também sobre isso o livro de Heather e Rapley nos oferece uma alarmante analogia histórica. O Império Romano do Oriente, que escapou da queda daquele do Ocidente, se envolveu em um conflito prolongado com o Império Persa, percebido então, como a China hoje, como rival “outra superpotência”. Os dois impérios, desgastados por uma longa guerra que consumiu seus recursos, se viram ambos exauridos no século VII e, por causa disso, ensinam Heather e Rapley, tornaram-se presa fácil para a jovem e possante expansão árabe. O Império Persa foi varrido. O Império Bizantino reduzido a um pequeno estado.
O livro de Heather e Rapley não é pessimista. Não prevê uma queda do Ocidente análoga à trágica queda de Roma no século V. Pelo contrário, oferece essa perspicaz analogia histórica como instrumento de leitura do presente, para que possa nos ajudar a evitar os erros políticos cometidos pelo Império tardio. Para o Ocidente, um futuro próspero continua sendo possível aceitando o fato de que o surgimento das periferias é um evento histórico de grande escala, inevitável.
A China voltou a ser o que foi por milênios: uma grande potência, a maior do mundo, com uma história relativamente bem menos belicosa do que aquela do Ocidente. Construindo uma cultura de colaboração com a China e com o resto do mundo, à semelhança do que a Europa e os Estados Unidos fizeram entre si, é o caminho que pode evitar a catástrofe. A alternativa, na qual a liderança ocidental infelizmente parece no momento emaranhada - o esforço inútil para conter as periferias tentando conservar o domínio militarmente - é uma receita para a catástrofe, tornada ainda mais ameaçadora pelas armas nucleares e pela crise ecológica que o planeta só pode enfrentar unido.
Como séculos atrás, o Império Romano se viu enfrentando tanto a Pérsia quanto a pressão das novas periferias, assim hoje o Ocidente se depara com uma China renascida e as numerosas potências econômicas que cresceram, libertas do jugo colonial e pós-colonial, e que reclamam um assento à mesa das decisões.
Aconteça o que acontecer, o Ocidente não voltará à supremacia completa que desfrutou nos séculos XIX e XX. A estrutura econômica do mundo mudou em profundidade. Como para Roma, mudou justamente graças ao sucesso do Ocidente. Se então tivermos um mínimo de senso moral não podemos nem mesmo lamentar demais a exploração sobre a qual foi construída a riqueza do Ocidente; pelo contrário, podemos nos orgulhar da esplêndida herança econômica e cultural com o qual o Ocidente contribuiu para o crescimento de todo o planeta.
Hoje há, portanto, dois caminhos à frente do Ocidente: tentar a todo custo conter o crescimento do resto do mundo, para manter o atual domínio, baseando-se na força militar e em sua agora já insuficiente centralidade econômica (as sanções não fizeram ruir, como muitos esperavam, a economia da Federação Russa), ou aceitar o mundo mais colaborativo e pacífico que tantos países de novas riquezas estão nos pedindo. Por mais que seja facilmente vendável politicamente para um eleitorado interno ainda impregnado de ideologia colonial e propaganda sobre a superioridade ocidental, escrevem Heather e Rapley, o conflito tem um preço ruinoso, quando comparado com a escolha política, menos fácil, mas de visão muito mais ampla, de aceitar o crescimento das periferias e entrar em colaboração com elas. A história não se repete, mas ensina.
Seremos capazes de tirar lições disso, nos perguntam Heather e Rapley, ou continuaremos como míopes a olhar apenas um dia de cada vez, e não ver onde estamos arriscando ir?
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Cuidado para não repetir os erros da Roma antiga. Artigo de Carlo Rovelli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU